Arame Farpado

T R A V E S S I A S

De quem é este território ou aquele? Eu posso passar, tu não. Porquê?

E porque é que tu passas e eu não? Porquê?

Todos os dias ouvimos notícias sobre os que morrem ao atravessar o mar Mediterrâneo, ao largo da Líbia ou, mais distante de nós, na fronteira do México com os Estados Unidos da América, para chegar ao outro lado. O outro lado onde está o sonho e uma, aparente, vida melhor. Mas não nos esqueçamos dos territórios ocupados, dos muros e dos arames que os palestinianos, também, não conseguem passar. Parece um filme que só passa na televisão mas é bem real. Já morreram milhares de pessoas nestas travessias e para quê? Ficamos chocados com o que as imagens nos transmitem? Pois sim, mas logo a seguir a rapidez das notícias leva-nos para outra notícia, e para outra e para outra, e daí a pouco já passou. Quem sabe não é uma imagem idealizada? Podemos questionar-nos sobre isso. Estas imagens, minuciosamente, pensadas pelos meios de comunicação social são, apenas, mais uma parte que integra toda a maquinaria bélica que se tem vindo a (re)produzir ao longo dos anos.

Esta história não é recente, repete-se há anos fruto de sucessivas violências e desigualdades. Actualmente, tornou-se, apenas, mais visível por ser mais massiva e incomodar o coração de quem vê corpos mortos. As imagens ferem o olhar e fazem escorrer lágrimas perante o número de vidas que se perdem a cada hora, sacudindo sentimentos de horror, de culpabilidade, de perda ou de indiferença perante a sua repetição constante.

A mobilidade humana tem uma história antiga e, por trás, o sonho de encontrar uma vida melhor: “A terra do sonho é distante (…) aqui sou povo sofrido/ lá eu serei fazendeiro”, em ‘Sonho imigrante’ de Milton Nascimento. Uns procuram o sonho de ter um lugar para viver onde não toquem sirenes de aviso de bombardeamentos e onde possam (re)construir a sua família. Outros procuram o mesmo sonho apesar de não fugirem a uma guerra tão explícita. São sonhos que esbarram com muros, com arames, com políticas, com o poder e os interesses daqueles que decidem. As fronteiras estão abertas para alguns que, muitas vezes, têm de preencher requisitos de classe social ou de cor da pele. Os outros ficam do outro lado ou são levados de volta, para o território de onde partiram, perdendo todos os recursos que aplicaram neste sonho. Um sonho que se desfaz.

Porque é que uns têm direito a ir e a passar e outros não?

Porque é que para uns as fronteiras se fecham e para outros se abrem?

Diante desta complexa situação muitos movimentos tornam-se invisíveis apesar das rotas estarem bem definidas. Movimentos de cada vez maior vulnerabilidade perante o aumento da exclusão, da segregação, do estigma e da precariedade potenciam fortes tensões. Criam-se espaços e trajectórias de medo e de ansiedade difíceis de visualizar, que tornam ainda mais vulneráveis aqueles que querem ou são obrigados a sair daquele que consideram o seu país. A ambiguidade que se cria entre a visibilidade e a invisibilidade de muitas destas situações tem como base uma violência que se considera ilegítima, à luz dos Direitos Humanos, mas que ao ser produzida por grupos poderosos se torna difícil de combater.

Produzem-se ambientes de receio, de medo do ‘outro’ e os instrumentos ideológicos que daí advêm são muito bem pensados, blindando-se na linguagem que utilizam. Constroem um imaginário de medo do ‘outro’, do que vem, como se cada um de nós não pudesse também ir e chegar a um território onde também seremos ‘o outro’. Através de uma linguagem fácil, que se acomoda a qualquer circunstância, conseguem alcançar um efeito, aparentemente, clarificador e pacificador. Conseguem utilizar argumentos tão hábeis e astutos que, por vezes, neutralizam quem contra-argumenta, retirando-lhe a capacidade de questionar. Os meios de comunicação social mais hegemónicos limitam-se a replicar esta retórica e a reproduzi-la vezes sem conta para que se chegue a um consenso tranquilizador e sem conflito, e para que uma, aparente, paz vazia de significado prospere e o ‘outro’ continue a ser chamado de ‘outro’ e a turbulência que este possa provocar rapidamente seja silenciada. A ilusão e a hipocrisia dos discursos repete-se, mantendo-se igual o que estruturalmente está por resolver. Estes desencontros desencadeiam (in)diferença perante o ‘outro’, sentimentos construídos de insegurança e uma necessidade de vigiar e de controlar todos os espaços. Perante a complexidade destes processos e as rápidas mudanças, também de comportamento, não é de estranhar que muitos procurem a segurança como reacção ao medo, ao ‘outro’, ao estranho, ao desconhecido, não se conseguindo libertar da constante produção de terror. A apropriação dos conceitos de segurança e de insegurança nos discursos apenas estreitam âmbitos semânticos que se reduzem e sedimentam em significados empobrecidos, querendo mostrar uma neutralidade política que não existe.

As guerras não são inócuas, naturais ou inevitáveis. São provocadas por um conjunto de interesses financeiros, económicos e políticos que tornam os mercados mais poderosos e, muitas vezes, aparentemente, indestrutíveis. Os senhores da guerra não aparecem nos noticiários. Esses são invisíveis mesmo estando lá. Escondem-se por detrás de fachadas bonitas que os protegem deste ou daquele inconveniente para que não sejam importunados. E quem interessa nestes processos? Não são, certamente, aqueles que fogem, que migram ou que pedem asilo.

As pessoas sempre se moveram, migraram, deram o ‘salto’ na procura de um sonho. Sabemos que esse sonho pode não corresponder, posteriormente, à realidade de muitos. Sabemos que as pessoas e os próprios governos de cada país estão, muitas vezes, condicionados por muros, barreiras, arames e poderes que se tornam constantemente mais robustos. As políticas que têm por detrás interesses e as guerras que se produzem, para que uns se tornem mais fortes e outros mais fracos, são apenas dois eixos desta questão. Muitas outras linhas se podem definir se começarmos a levantar o pano.

As perguntas que se colocam são muitas e para algumas temos resposta. Para outras, a resposta é mais difícil, apesar de podermos ter algumas ideias. As obras da exposição “Arame Farpado” do Telmo Alcobia colocam-me ainda mais questões. Um questionamento permanente e crítico perante a invisibilidade das situações, da exclusão e da marginalização só porque há uns que são diferentes de outros e porque há interesses políticos e económicos que ultrapassam tudo. As perguntas colocam-se em permanência, não havendo respostas ou soluções simples, evidentes e a preto e branco. Mas é neste questionamento que reside a resistência e a luta por um mundo mais livre, democrático e liberto de arames e fronteiras, um mundo de todos e onde todos possam questionar-se e agir perante as respostas.

Ana Estevens