Luz da Noite – A criação de Nádia Duvall

Maria João Fernandes *

“A arte é um sonho sonhado pelo artista”

Anton Ehrenzweig

Em muitos anos do longo périplo da minha já longa carreira de crítica de arte
raras vezes me deparei com a surpresa, a originalidade, a força criativa e a autenticidade
pulsional do percurso da jovem Nádia Duvall. A algumas das suas referências: Yves
Klein (a implicação do corpo, Rothko (misticismo e espiritualidade), Pollock
(gestualidade e pulsão) e Helena Almeida (a componente mental, conceptual) eu
acrescento as que de imediato me ocorreram: Tàpies, Frida Khalo. Tàpies inventou em
meados dos anos 50, a escrita sobre o muro e uma nova visão da matéria e dos objetos
do quotidiano. Nádia Duvall cria agora uma escrita sobre a água e nascida da água e
uma matéria plástica para expressar e fixar os seus gestos, pois aquela que herdou de
séculos de tradição a Ocidente não a satisfaz, não corresponde à sua necessidade de
achar um equivalente dos seus subterrâneos impulsos e luminosas gestações. Nenhuma
tinta saída do tubo, nenhum lápis fabricado lhe serve ou basta, simplesmente porque
aquilo que persegue, as suas obsessões mais antigas sem equivalente no mundo visível e
sensível aguardam para vir à tona da consciência, a conjunção alquímica do espírito, o
seu, o do mundo e o de uma matéria que ainda não existe. Que vai depender de uma
celebração e de uma gestação envolvendo a luz, o espaço, as sombras, o seu corpo, uma
pele de tinta que ela própria foi produzindo ao longo dos anos, a magia das cores, os
seus véus, o seu mistério. E a água, mater e magister de uma “obra ao negro”, de uma
alquimia com diversas fases, da qual adivinhamos a calcinação, a destruição das
diferenças, uma negritude que é a da noite da alma e a da noite do mundo, a solução na
água purificadora e uma nova solidificação (rubedo), fase da transformação da matéria,
trazendo consigo a união dos opostos, “a coexistência pacífica dos contrários” e enfim
aquela que se anuncia, em marcha ocultamente, da sublimação, “que corresponde ao
ouro, cor do sol, plenitude do ser, calor e luz.” (1)

A analogia com um processo alquímico está implícita na arte de Nádia Duvall,
na transformação sofrida no processo de criação de uma matéria nova, a partir da
dissolução e da solidificação com a mediação da água e seu simbolismo. Água
ambivalente, impura e pura de que “umas gotas bastam para purificar um mundo”, nas
palavras de Gaston Bachelard citado por Gilbert Durand que a define como “grande e
arquetipal imagem psicológica” (2). Água genitrix, equivalente do mar cósmico original
onde dormem todas as potencialidades da vida, água profunda do inconsciente na sua
demanda de mais luz e de uma alegria que é o secreto halo do Paraíso. Essa fusão
primeira no seio de uma unidade e de uma luz intactas, a água a esconde e a guarda
preciosamente. Mistério insondável do espírito, da sua origem e justificação. Hoje
ergue-se com fulgor, uma nova linguagem plástica que tudo nega e tudo reinventa a
partir da matéria-prima da água, como se se tratasse da primeira manhã. Reivindicando
o poder da criação do espírito faz aparentemente tábua rasa de tudo o que precedeu esta
aventura, mas que é o húmus que permitiu a sua floração.

Nádia Duvall com a sua experiência de sofrimento, os seus diários de esquissos
e retratos, os seus perturbadores heterónimos, a sua biografia invulgar, é irmã de Frida
Khalo, não apenas por isso, mas sobretudo porque foi capaz de criar uma arte no
feminino que é a expressão mais profunda desse mesmo feminino, do seu poder de dar à
luz, de arrancar às trevas o sono da matéria transformando-a na exaltante aventura do
espírito. Fazendo-nos evocar no seu trabalho a série dos “vernizes” de Tàpies integrada
na exposição que comissariei em 1991 na Fundação de Serralves e na Fundação
Gulbenkian, ou Frida Khalo, a artista é sobretudo ela mesma, no seu jovem afã de criar
uma realidade à sua imagem, visto que todas as suas obras são uma espécie de auto-
retratos, mas estas imagens não são mais do que emanações secretas da interioridade
humana, a celebração de uma ferida, de uma cisão cuja unidade se pretende
secretamente refazer.

A delgada película de tinta no contacto com a água (de uma piscina que colocou
no seu atelier e que considera o verdadeiro “útero” na origem da gestação das suas
obras), ganha matizes e sombras para se fixar sobre o vidro, seu suporte, onde
posteriormente se integram as formas duras e invasoras. Por meias palavras ou meias
frases, como se a discursividade fosse perigosamente equívoca, fala no “desejo”, desejo
de unir o consciente e o inconsciente separados por essa transparente parede de uma
matéria arrancada ao nada. Metáfora da pele de um corpo presente e ausente,
insustentável leveza que apela ao devir da consciência.

O seu próprio corpo está envolvido neste processo, na manipulação dos
materiais, complexa e árdua, na relação com a água que permite fixar as imagens
“infixáveis”. E presente também como fonte de todas as metáforas, como um casulo de
sombras que aguardasse o voo da mariposa dos sonhos. Corpo de dor, de incisões,
atravessado por formas que rasgam a sua inocência, a sua lisura, a sua beleza. Formas
esculpidas intimamente azuis que transformam estas peças em pinturas/objeto num
sábio jogo de opacidades e de transparências com veios e delicadas nuances de cor,
aberturas e rasgões, marcas na “pele” que se estende e vibra sobre o suporte do vidro
nele acordando a vida. Uma vida segunda, inusitada e palpável carícia dos sentidos da
alma, um olhar para dentro vindo da noite secreta do espírito, um escutar das sombras,
um pressentir do azul onírico do sonho, “centelha divina enterrada na escuridão” (3),
índice da luz mais oculta, perfume da ausência que precede o esplendor.

“Visgraat” (espinha de peixe), é o título desta série. Nádia Duvall achou numa
língua estranha à sua, o holandês, os sons ásperos que correspondem à sua expressão da
dor, à sua procura de uma matéria para o sofrimento e a perplexidade. Espinha de peixe,
coluna vertebral, invasora, sempre com uma posição central e vertical, espécie de eixo
fundador deste noturno universo. No plano do mito o eixo do mundo, “axis mundi”, dá
um sentido ao espaço permitindo a relação com o Sagrado. Não por acaso a artista
descobriu no reino marítimo esta soberba metáfora que lhe foi ditada pelas leis ocultas
da gramática do inconsciente, nas suas estruturas mais profundas estudadas por
Ehrenzweig (4). Neste espaço noturno e aparentemente caótico, a espinha de peixe é
não o anti “axis mundi”, como poderia parecer à primeira vista, mas o eixo cósmico, a
verdadeira coluna vertebral do oceano onírico e profundo dos sonhos. Destas grandes
criações, emanações, do inconsciente, imagens perturbadoras, nascidas do limbo de
todos os desejos.

De mistério em mistério, de camada em camada, de sombra em sonho, a luz da
melancolia acende as trevas em cintilações obscuras, como suspiros ou gritos. Retratos,
pura alquimia interior, no casamento da cor, da forma e de superfícies mínimas ou
grandiosas, retratos sobre o vidro, frágeis e densos, feridas, labirintos mágicos, íntimos
fogos crepitando sussurros, mágoas e maravilhas, da noite, da ausência, labirintos como
cabelos de uma árvore que cresceu para dentro das entranhas da terra, os seus fios
balbuciando as palavras de um alfabeto sem equivalente algum.

Da escuridão, do elo com a música, do silêncio rasgado pelos relâmpagos da
noite ancestral, navegam estas asas, estas membranas violentadas pelo sofrimento e a
mágoa de estar vivo. Navegam ao vento do espaço sideral, onde os cometas somos nós,
flores sem jardim. Novo espaço, nova matéria, nova linguagem para uma nova
expressão do humano. Nenhum psicologismo consegue explicar este percurso, feito à
escala de um meio maior do que o nosso. Trata-se de reinventar o humano, uma vez
mais, de esboçar uma nova trajetória, a partir do sofrimento que nascer sempre implica,
marca de todo o grande artista, como Roland Penrose escreveu a propósito de Tàpies.
Um humano em sintonia com o Cosmos, nascido do ventre das metáforas da água, em
migração para outros territórios do espírito em eclipse, promessa do ouro, de um sol,
seu verdadeiro destino.

1. Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain, «Alchimie », Dictionnaire des Symboles,
Édition Seghers, Paris, 1971, p. 36.
2. Bachelard, Gaston, citado por Durand, Gilbert, Les Structures Anthropologiques
de l’Imaginaire, Édition Bordas, Paris, 1973, p.194.
3. Jung, Carl, Gustav, « A Luz da Escuridão », Estudos Alquímicos, Editora Vozes,
Petrópolis, 2003, p. 162.
4. Ehrenzweig, Anton, L’Ordre Caché de l’Art, Éditions Gallimard, Paris, 1974.

*A.I.C.A.
Associação Internacional de Críticos de Arte