Ken Rinaldo

Dispositivos Para a Natureza

por Miguel Matos

 

“A arte promete o mais distante e até mesmo o mais remoto futuro”[1] – Rainer Maria Rilke

 

São raras as vezes em que o público lisboeta tem oportunidade de conhecer os avanços de ramos da arte ainda pouco conhecidos ou divulgados como a bioarte e a digital art. No entanto, figuras como o galerista António Prates e o artista Leonel Moura insistem em realizar regularmente exposições que nos trazem notícias sobre um campo infinito de possibilidades que ainda não é suficientemente compreendido. Pelas mãos de António Prates temos tido acesso a grandes exposições como a de Miguel Chevalier. Por seu lado, Leonel Moura organizou em 2009 a enorme mostra “Inside”, na Cordoaria Nacional, em Lisboa, onde expôs o artista Ken Rinaldo, entre muitos outros representantes desta área.

A ideia em si do cruzamento de instrumentos, ideias e recursos vindos dos campos da ciência, da botânica e da arte já não é novidade. O que constitui novidade é a inovação de cada um dos projectos realizados. Existe ainda, em Portugal, e infelizmente, uma dificuldade de acesso directo às propostas que aparecem vindas dos (ainda) poucos artistas que por todo o mundo se dedicam à investigação e à criação nestes domínios. Chamam-lhe bioarte, conceito de vida manipulada com propósitos artísticos que se cruza frequentemente com a arte digital, estando esta exposição na perfeita intersecção entre estes dois movimentos artísticos.

Nesta exposição, e olhando para os “Cascading Gardens” de Ken Rinaldo, é-nos apresentada uma escolha. Podemos ver esta instalação sob o ponto de vista científico, da engenharia, da agricultura ou mesmo da arte, ou ainda misturando tudo isto. O que torna este tipo de arte pouco fácil de tipificar é exactamente esta fragmentação de elementos e o reunir de todos eles. O que Ken Rinaldo introduz neste sistema de cultivo já praticado em todo o mundo é uma proposta de esteticização deste método, aplicando-o a uma janela e transformando a disposição tipicamente horizontal de um jardim ou uma horta numa instalação vertical, fazendo uso das janelas que todos temos em casa (neste caso a montra da galeria). O ambiente urbano verticalmente construído serve de cenário e ponto de partida para um método de cultivo ecológico, sustentável e funcional, mas também visualmente atractivo.

O contraponto destes dispositivos artificiais para a vida vegetal é composto por uma série de imagens digitalmente produzidas em que Ken Rinaldo representa sementes de plantas imaginárias. Se a natureza dotou as plantas de possibilidades reprodutivas – através das sementes – e apetrechou as mesmas com capacidades de deslocação, fixação, multiplicação, etc, o artista, nestes trabalhos, imaginou as necessidades das suas próprias sementes. De seguida, criou capacidades, apêndices e acessórios que as tornariam mais capazes de garantir a continuidade da sua espécie. Tudo isto é explorado de forma pictórica, ficando o observador encarregado de usar também a sua imaginação para atribuir funcionalidades e propósitos às pilosidades, texturas, extensões, torsões e outras formas orgânicas de tais estruturas. Estas pequenas bombas de vida poderiam fixar-se, agarrar-se, partir-se e abrir-se soltando seus esporos, resistir a ventos, chuvas e nevões… Funções que se depreendem pelas capacidades insinuadas nestas imagens. Podemos também imaginar as magníficas plantas que nasceriam a partir destas hipotéticas sementes. Selecção natural? Premonições de uma possível evolução no reino vegetal? O próprio termo “evolução” tem sofrido uma evolução e tornou-se um processo que pode ser influenciado com a ajuda da tecnologia[2].

Curiosamente, algumas destas formas desenvolvidas digitalmente por Ken Rinaldo fazem lembrar outros organismos vivos não pertencentes ao reino vegetal, como insectos, animais anelídeos ou moluscos, por exemplo. Na verdade, se não nos dissessem que se trata de sementes imaginárias, poderíamos pensar que se trata de imagens microscópicas muito ampliadas de vírus ou bactérias, por vezes com um aspecto ameaçador e em desenvolvimento de algo que sugere perigo.

Algumas destas sementes são apresentadas em estádios de transição, abrindo-se ou esticando apêndices, indicando fases de mutação ou de crescimento para novas formas. As cores vibrantes, as texturas elaboradas e a tridimensionalidade das imagens impressas tornam estes trabalhos vivos, como se tais criaturas pudessem ser tocadas ou conseguissem extrapolar a sua superfície pictórica para contaminarem o solo.

“A arte digital oferece um verdadeiro reservatório de formas impossíveis de imaginar de outro modo, uma quantidade ilimitada de formas representando, por exemplo, objectos em três dimensões (…). O computador pode permitir traçar as figuras mais inimagináveis, onde poderosas equações possuem uma pluralidade de parâmetros funcionais, capazes de satisfazer o nosso inconsciente óptico”, escreveu Herlander Elias[3]. Pelas formas estranhas e até ameaçadoras, pela fantasia que convocam, pelas cores e ambiente onírico de ficção científica, pelas manchas que apelam ao nosso subconsciente, poder-se-ia dizer que esta série, gerada por um cérebro humano e usando o computador como instrumento, possui elementos surrealizantes. Mas isso apenas atesta a complexidade do trabalho de Rinaldo. Já não sabemos o que é real ou imaginado, se estas imagens se reportam a algo existente antes delas e é essa a primeira pergunta que surge ao observá-las. Em analogia, “a realidade virtual vem demonstrar que o nosso cérebro não faz distinção entre o mundo físico e o imaginado. Coisa que já sabíamos a partir dos sonhos, mas que adquire uma outra dimensão, fenomenológica, já que agora temos estes novos sonhos perfeitamente acordados”, disse Leonel Moura. Nesta exposição vemos que tudo se cruza. Já não é só Bioarte, já não é só Digital Art e afasta-se da robótica típica de muitos projectos anteriores deste artista. De facto, torna-se uma obra difícil de caracterizar, embora possua uma componente visualmente exuberante. Ainda segundo Leonel Moura, “(…) aquilo que efectivamente assinala a emergência de um novo paradigma na arte é a construção deliberada de uma nova vida essencialmente transhumana, parte biológica, parte artificial”[4].

Esta exposição é uma ode à natureza, criando novas formas e condições de a fazer proliferar, seja em estruturas artificiais auto-sustentáveis como nos jardins hidropónicos e vermipónicos, adaptados às necessidades urbanas e com componente estética, seja no exercício de imaginação que é a criação de imagens de sementes futuristas e criadas pelo homem. Um jardim do futuro cruza-se com uma solução para o presente numa exposição em que a natureza e a arte se interpenetram.


[1] RILKE, Rainer Maria, Da Natureza, Da Arte e Da Linguagem, Large Books, Lisboa 2009

[2] PAUL, Christiane, Digital Art, Thames & Hudson, Londres, 2003

[3] ELIAS, Herlander, Néon Digital – Um Discurso Sobre os Ciberespaços, Universidade da Beira Interior/Labcom, 2007

[4] MOURA, Leonel, Vida 2.0: O Novo Paradigma da Arte in Inside: Arte e Ciência, Ed LxXL, Lisboa, 2009

 

Catálogo da Exposição